25.9.12

Ode à amizade sobre música de Suzanne Vega



No tempo em que ainda conseguia decorar letras de canções, tarefa à qual me dedicava com denodado investimento, os discos de Suzanne Vega eram um manancial eleito de belos textos, com a dose certa de enigma. As melodias intimistas, envoltas na delicadeza de uma voz de garota, eram menos óbvias do que o que se consumia na altura, nomeadamente o rock grupal e os hinos de afirmação "rebelde" (grande bocejo) de que estavam o States e o Moçambique cheios – ainda havia aqueloutro, como é que se chamava?... Transbordaram dos seventies e estacionaram em Coimbra no início dos anos 90, algures entre a Rua do Brasil e o Bairro Norton de Matos. Eu, como morava no Penedo da Saudade, epicentro da sobranceria burguesa, estava condenado à exclusão.

I wanted to see how it would feel
To be that sleek
And instead I find this hunger's
Made me weak


No pequeno reduto que formámos quando percebemos, que, na realidade, só nos tínhamos a nós os três, a Rita e eu elegemos a Suzanne Vega como musa. Aquele maravilhoso primeiro disco que falava suavemente à nossa sensibilidade riscada de adolescentes. Deslocados na família e na rua - e, por vezes, contrastando belicosamente com a aura de adequação realizada da Ana - mas muito, muito pouco práticos.

Today I am
A small blue thing
Made of china
Made of glass


Tudo sem grandes estardalhaços. Éramos pouco práticos mas não estúpidos e, acima de tudo, partilhávamos um sentido de humor que nos mantinha ao abrigo de alguns lugares-comuns. E de algum sofrimento. Enfim, líricos e ociosos, selando o nosso pacto com as letras de Suzanne Vega. “Marlene on the Wall”. “The Queen and the Soldier”. “Small Blue Thing”. “Cracking” e “Undertow”. E também o “Some Small Hope”, da Virginia Astley, para dias mais cinzentos. Estes foram os nossos hinos ao longo dos tempos e, em certa medida, são-no ainda hoje.

But the only one here now is me
I'm fighting things I cannot see
I think it's called my destiny
That I am changing


Tenho saudades desses tempos, de nós os três, de um certo espaço que não gosto especialmente de revisitar, mas que, mais que especial, foi determinante para tudo o resto. Para o que conseguimos. Para o que não conseguimos. Para, finalmente, sabermos o que queremos.

It's a one time thing
It just happens a lot
Walk with me and we will see
What we have got


(…)

The sun is blinding
Dizzy golden, dancing green
Through the park in the afternoon 

Wondering where the hell I have been?

21.9.12

Conselho de Estado











Hoje, e em portugês, numa latrina mais ou menos perto de si.

Ilustração: Jordi Sàbat

20.9.12

Hard copy 63



Obrigado, D.

Fragmentos de copy, ou um cadáver esquisito


Já foste exposto à ignorância radioactiva daquela tipa?

Não te conheço, mas porque é que a tua assinatura de email está em itálico?

… É muito estilo Colecções Philae meets plásticos Domplex.

A alma portuguesa com geleia real.

E com um par de ovos se faz a Páscoa.

Olhaa, o que é que a tua mãe faz? És comunista? O teu pai está desempregado? Aaah…

“Estou a ter uma crise existencialista.”

Vem experimentar uma coisa em grande e sente o teu prazer aumentar.

Oxalá chegues àquela idade com a mesma patine na simpatia.

Desculpe, mas a sua finesse não lhe permite assegurar as necessidades básicas da boa educação?

O meu passado sórdido veio estagiar dois dias para a vivenda ao lado.

Eu localhosto, tu localhostas, ele localhosta

“Conheces as Pussy Riô?”

“Boroa”?! Mas quem raio escreve “boroa”?

"Olhaa, 'camarão' é com maiúscula ou minúscula? Aaah…"

- “Ça va?”
- Ça. Já não há orçamento para o va.

- “No tempo do Salazar é que se estava bem.”
- Acima de tudo porque tu não eras nascida.

Não é quaisqueres, é quaisquer. Não é hajam, é haja. Não é eu disse a elas, é eu disse-lhe. Não é há-des, é hás-de. O acento é para a esquerda, não para a direita. Não é vistes, é viste. Não é asterístico…

- “O que é a ri-ã-trê? [n.d.r.: rentrée]”
- É uma festa popular "tunísia".

Podes perfeitamente sacrificar a originalidade à funcionalidade e até à mera conveniência, mas não esperes que a tua dignidade faça a síntese.

Cadavre exquis pintado por Leonora Carrington e o seu filho Pablo Weisz-Carrington

13.9.12

Servidão


Este texto foi escrito antes de eu ter lido estoutro, incomparavelmente mais interessante, eloquente e expressivo no emprego das analogias, assinado por Juan José Millás (obrigado, V.). Uma tradução crua e muito clara do sentimento geral, para todos os que enfiam a cabeça na areia e para todos a quem serve a carapuça de cabrão filho da puta.

"Para exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspetiva do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória."

(...)

"Quando o terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas ainda existem - os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres. E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro." 

Ilustração: Patrícia Póvoa

Stop. Motion.


Instalação artística não comissionada.

11.9.12

Os coelhos e o carbúnculo da dignidade


Por muito cruel que seja a expressão popular “matar dois coelhos de uma cajadada”, a metáfora instalou-se sem pudor no nosso inconsciente e a ela recorremos com frequência, nas mais diversas circunstâncias. Há razões para não ter caído em desuso, apesar do imaginário violento e anacrónico, num tempo em que os animais têm direitos e em que habituamos as nossas crianças a identificar o símbolo do coelho nas embalagens. Em que as muitas espécies em perigo, cortesia da escalada civilizacional, ilustram a butal inversão de valores. Uma prática que hoje nos parece bárbara era imperativa nas economias de subsistência, visto que os coelhos, dotados de um invulgar ímpeto reprodutivo, transmitiam doenças às ovelhas e destruiam numerosas colheitas. Quando os pastores desferiam o hábil golpe que eliminava dois coelhos durante a cópula, faziam-no, naturalmente, por uma questão de sobrevivência. Era um gesto preciso, necessário, e, quero crer, misericordioso. Os coelhos constituiam uma praga. Controlá-la era responsabilidade de quem dependia da terra e do gado para viver, assegurando a subsistência de toda a comunidade. Por isso hoje usamos licenciosamente esse adágio, embora sejamos mais que nunca responsáveis pela preservação da dignidade dos bichos, e ao mesmo tempo cada vez menos capazes de conservar a nossa. A evolução social, alimentada tão livremente como o mercado, reinventou a metáfora com mais perversidade que nunca. E muito maior alcance. Ela persiste porque não houve mudança. Só mudou a perspectiva. Os animais e as relações de equilíbrio da ruralidade pragmática transfiguraram-se em bestas mundanas de enorme engenho e desigual poderio. Indomáveis, não respeitam domínios, não temem represálias e só devem obediência a quem, entre iguais, tem as presas mais afiadas. Arrepanham só para si o pedaço de terra e de subsistência que é de todos. Com animais não se pode dialogar, argumentar, negociar, contemporizar. Com animais deste porte e índole, por mais responsabilidade social e auto-regulação a que nos agarremos, por maior tepidez dos tempos que nos sirva de desculpa, não há medidas reivindicativas, dissuasoras ou preventivas que funcionem. E tal como as metáforas se adaptam à História, também os cachaços mudaram de dono, agora à mercê de uma raça de coelhos mutantes que aprendeu a reproduzir-se em número reduzido e exponencialmente letal. Tão letal quanto o receio de lhes fazermos frente. 

Outrora, nas devidas mãos, o cajado desferia golpes certeiros e inevitáveis. Sem demais questões.

Desenho de Peter Ravn

Compostagem verbal





























Sigo com curiosidade antropológica os comentários de alguns sites, com especial incidência no Autosport, que se tem revelado um terreno fértil de conhecimento. Em primeiro lugar, observo manifestações remotamente familiares da língua portuguesa, evocativas, talvez, de gravuras rupestres neolíticas (mas sem o investimento estético), foneticamente representáveis por urros primitivos cuja classificação decerto desafiaria a ciência moderna. Mas o que mais me fascina é o manancial inesgotável de insultos e provocações dirigidos não se sabe bem a quem, nem porquê, contudo indiciadores de enorme convicção e disponibilidade horária. Fica aqui uma pequena demonstração da fertilidade desta variante comunicativa tão pitoresca.

Hard copy 62


De um lado temos a singela identificação de produto para a higiene dentária, "com extractos naturais" e tudo e tudo. Do outro, confirmam-nos a sua pureza e garantem-nos que não estamos a ser objecto de uma qualquer experiência química, assegurando-nos simultaneamente que não foi testado em animais. Uma afirmação menos virginal que o resto, visto que uma barrinha vertical com valor absoluto coloca em dúvida o rigor da confecção. Onde está um copy quando se precisa dele.

7.9.12

Um Gorgulho na cama


E já que falamos em bens alimentares, eis Lady Gorgulho numa elegante produção fotográfica de Terry Andy-Warhol-wannabe Richardson. A porcalhona favorita das estrelas meets a badalhoca do momento. Numa pose ao estilo chouriçada no quarto "Oriente Esbraseante" da casa de alterne mais fina de Caxinas, Gorgulho, que já não sabe que uso dar ao dinheiro, faz retenção anal com um rolo de notas de quinhentos. Foge, Bobi, que a seguir és tu.

Louvai o senhor


Não sei para que lhe serve o dinheiro, mas contribui de certeza para o ar de nababo presuntuoso refastelado no trono, a esboçar um boneco descontraído e branqueado, semi-sorriso complacente e manápula executora fingindo indolência. A alva cabeleira em cenário bucólico quase lhe dá uma bonomia quintaleira. Para que servirá o dinheiro a este avô matreiro? Talvez para ir muito além das cantigas, do folclore histérico, dos chavões encerados e do populismo mais infesto... Não estamos nós cansados de saber o que está realmente por trás do realejo e das farturas destes empresários? Poder. Autoritarismo. Domínio. Mais dinheiro e cada vez menos escrúpulos. E quem impingiu pão e circo com tão diabólico engenho que, hoje, basta dar uma ordem e, mesmo enchouriçados, os portugueses acorrem ao templo para lhe dar o dízimo? Porque este já fez de Portugal, não o seu quintal, que é de somenos, mas a sua ostra. Bem chupadinha e acompanhada por um Redoma Reserva fresquinho. Consta que já é coisa para ser paga com cartão.

A imagem foi rapinada daqui.

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