
Haja um zeppelin disponível para algumas evasões, no meio do blitz económico e moral que se abateu sobre nós. Aos que não têm motor, desejo ventos de feição.
Ilustração: Fabiano Gummo
A vida é surpreendentemente flexível.
Vasco Pulido Valente já foi aqui referido mais do que uma vez, tanto a propósito da personalidade quezilenta quanto da oportunidade da sua escrita. Mas as suas capacidades analítica e sintética são toldadas pelo espírito arruaceiro e por um ódio atávico a todas as coisas vermelhas (zeze-zeze-zeze) e proletárias, com base nesse firme argumento de que, por trás de um escritor de esquerda não academicista está sempre um vil, porém insignificante, agitador. Arruaceiro erudito, entenda-se, molhando a pena na vinagreira das suas convicções e expelindo-as com a mesma veemência de um refluxo gastroesofágico. Entre todos os intelectuais de direita, Pulido ganha a palma do ressaibo: não é protagonista político, nem autor reconhecido, nem líder de opinião. Houvera capacidade física para o ouvir nas jornaladas da Moura Guedes e até se podia ter retido qualquer coisa, mas com um timbre de enceradora e a fluidez articulatória de uma moreia, só restou a Vasco refugiar-se naquilo que faz melhor: a crónica caceteira. Isto a propósito do seu espaço habitual no Público, às 6ªs feiras, onde (na peça de 23/10), a pretexto de desvalorizar as declarações de José Saramago e de criticar uma nação que se dedica a explorar fogosamente todas as irrelevâncias a que deita mão, arrepanha as entranhas com todo o rancor e veneno que dedica ao autor em causa, à esquerda, ao PREC, ao Nobel e até, possivelmente, a alunos do politécnico (especialmente de marcenaria) que cometam a ousadia de vir a escrever romances. Premiados. Vasco… és o maior.

É sabido que o Carga de Trabalhos se transformou na lata do lixo da Comunicação
Ilustração de Tiago Albuquerque


E aí está que os santanários ficam tão em brasa com as declarações de José Saramago como a turba se agrava com as pataratices de uma vedeta de TV brasileira. Tudo cabe no mesmo saco, com a mesma fome de carnificina. Nem vale a pena enunciar um par de diferenças fundamentais, mas neste caso seria desejável uma reacção inteligente, familiarizada com o pensamento e a postura pública do escritor. Claro está que não é a que que vemos ser explorada com grande alarido pelos meios de comunicação. Saramago gosta de torpedear a religião organizada e os seus representantes. É praticamente uma monomania. Mas tal é fruto do espírito inquieto e inconformado de um homem quase nonagenário que, à força de tão intensamente reflectir, questionar e interpretar a condição humana, acumula desilusão e amargura. E então, o que há de estranho na sua descrença? A cosmovisão de José Saramago não é uma excentricidade, é uma conquista. Triste, pessimista? É a dele. Qual é o seu crime, enquanto intelectual e escritor? Dizer o que pensa e, não raras vezes, a verdade? É impositivo, inconveniente, desagradável? É, e então? O PNR é uma manifestação escabrosa na sociedade portuguesa, com cartazes e tempo de antena. Reacções viscerais a esta vergonha, há? Quem não der valor a Saramago que o ignore, não se ponham é os arautos dos bons costumes e da salubridade moral a brandir tochas, entumescidos de raiva condenatória. Por pouco mais anda Salman Rushdie na clandestinidade há sei lá quanto tempo. O devir histórico matou as fogueiras mas não as apagou da consciência. Talvez Saramago, com o seu anticlericalismo absolutista (não está decerto contra qualquer tipo de espiritualidade ou mesmo religião per se; o senhor é ateu, ponto), se queira certificar de que as fogueiras permanecem apagadas. Milhares de anos de experimentação não corrigiram a intolerância. Saramago não é um portentoso exemplo de diálogo, mas a sua intransigência não condena ninguém e muito menos fecha a porta à interrogação.

(Textos assinados pelo coreógrafo Rui Horta, incluídos no programa de Scope)


Hoje fui confrontado com uma série de protocolos estabelecidos entre uma empresa e diversos prestadores de serviços, visando beneficiar, pois claro, os colaboradores. Havia um, em particular, com o seguinte headline: UMA PARCERIA COM VISÃO. A entidade em causa era uma rede de produtos oftálmicos. Apesar da vergonha vicária, pensei que, neste contexto das grandes empresas, seria bem menos cansativo debitar pensamentos lineares, em auto-gestão, sem ninguém ter que aprovar ou desaprovar coisa nenhuma. E até podia fazer umas coisas mais exigentes. Por exemplo: 1. Empresa de próteses e material ortopédico: UMA PARCERIA COM PERNAS PARA ANDAR; 2. Farmácia: ESTÁS DOENTE? TENS BOM REMÉDIO; 3. Funerária: PARA QUEM ESTÁ MORTINHO POR CHEGAR A CASA; 4. Vales de refeição: COME E NÃO CHORA; 5. Centros de formação: PARA O SABER NÃO OCUPAR O TEU LUGAR; 5. Material informático: COMPUTAS… OU NÃO
COMPUTAS?...; 6. Creches: UMA PARCERIA SEMPRE A CRESCER; 7. Seguro de saúde: PORQUE SABES O QUE TE ESPERA; 8. Entidades de crédito: APROVEITA O FANTÁSTICO PACK COM SEGURO DE SAÚDE INCLUÍDO; 9. Assistência médica ao domicílio: O DOUTOR TOCA SEMPRE DUAS VEZES; 10. Marcas automóveis: UMA PARCERIA SOBRE RODAS. Por aí.

Não costumo ser dado a estas coisas, mas estou relleno de orgulho. Dois ateliers com os quais trabalho receberam prémios e menções nacionais e internacionais. Um amigo, com quem colaboro episodicamente, está a produzir uma exposição fotográfica de grande interesse e apresta-se a trazer cá ao burgo outra não menos interessante. Este é o lado irracional da vaidade, como o estímulo imediato ao ouvir alguém tratar-nos por “dr.” depois de sairmos da faculdade. Uma coisa tão fortemente idiota quanto inegavelmente cultural. Logo nos apercebemos do ridículo e chamamos a pessoa à razão, mas há ali um não sei quê de validação a que sempre aspirámos. Não existiu qualquer intervenção minha nestes trabalhos, e não é o valor (mais ou menos) subjectivo das distinções que me deslumbra. Acho que, pela primeira vez, é a realização dos outros que me faz sentir mais completo. É o orgulho de os conhecer, de confiarem em mim e, mais importante do que isso, de com eles privar. Assistir ao reconhecimento de pessoas cujo trabalho marca a diferença, na postura e na execução, é um excelente tónico para uma realidade enfermiça. Por isso, malta, vos tiro o chapéu.






