E aí está que os santanários ficam tão em brasa com as declarações de José Saramago como a turba se agrava com as pataratices de uma vedeta de TV brasileira. Tudo cabe no mesmo saco, com a mesma fome de carnificina. Nem vale a pena enunciar um par de diferenças fundamentais, mas neste caso seria desejável uma reacção inteligente, familiarizada com o pensamento e a postura pública do escritor. Claro está que não é a que que vemos ser explorada com grande alarido pelos meios de comunicação. Saramago gosta de torpedear a religião organizada e os seus representantes. É praticamente uma monomania. Mas tal é fruto do espírito inquieto e inconformado de um homem quase nonagenário que, à força de tão intensamente reflectir, questionar e interpretar a condição humana, acumula desilusão e amargura. E então, o que há de estranho na sua descrença? A cosmovisão de José Saramago não é uma excentricidade, é uma conquista. Triste, pessimista? É a dele. Qual é o seu crime, enquanto intelectual e escritor? Dizer o que pensa e, não raras vezes, a verdade? É impositivo, inconveniente, desagradável? É, e então? O PNR é uma manifestação escabrosa na sociedade portuguesa, com cartazes e tempo de antena. Reacções viscerais a esta vergonha, há? Quem não der valor a Saramago que o ignore, não se ponham é os arautos dos bons costumes e da salubridade moral a brandir tochas, entumescidos de raiva condenatória. Por pouco mais anda Salman Rushdie na clandestinidade há sei lá quanto tempo. O devir histórico matou as fogueiras mas não as apagou da consciência. Talvez Saramago, com o seu anticlericalismo absolutista (não está decerto contra qualquer tipo de espiritualidade ou mesmo religião per se; o senhor é ateu, ponto), se queira certificar de que as fogueiras permanecem apagadas. Milhares de anos de experimentação não corrigiram a intolerância. Saramago não é um portentoso exemplo de diálogo, mas a sua intransigência não condena ninguém e muito menos fecha a porta à interrogação.
20.10.09
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