















O autêntico português fala com sotaque bávaro, apara frequentemente o bigode, usa um típico chapéu de capim dourado e vive à beira mar. A bandeira é removível.
Mas será que existe a mais remota possibilidade de o público, mesmo o mais embrutecido e acrítico, cair na cantinela sebenta do Pingo Doce e dos seus repugnantes porta-bandeira? Ele haverá gajo com maior ar de intrujão do que o actor escolhido para apregoar as virtudes dos frangos da Jerónimo Martins? E dos pastéis de nata, da maruca congelada, do repolho mais fresquinho? Tu sabes onde te enfiava um par de repolhos, ó gordo untuoso? E mais uma maruca para ajudar? Mas que raio de cúpulas "criativas" são estas que, em sádica congeminação, decidem inflingir-nos aqueles gemidos forçadíssimos, aquela bocarrona de cerdo lambe-cus, aquela gestualidade de farsante amador? Não é a publicidade já suficientemente deprimente, não é o horário nobre decadente quanto baste para ainda nos virem atormentar com esta coisa de revirar a tripa? Alguém em seu perfeito juízo se deixa seduzir por uma sujeita em pré-colapso cardíaco de tanto forçar os cantos da boca? Emaciada de tanto martelar as sílabas? Com um tesão tão despropositado ao falar de takeaway? De empadão de carne e de grão com bacalhau? Por Deus! Ide fazer outra coisa qualquer, senhores, longe dos nossos olhos e ouvidos. E deixem de estropiar a sensibilidade dos clientes incautos de supermercados de bairro com hinos arrepiantes. Eu já ia ali ao Minipreço comprar uns iogurtes ranhosos.
E eu que durante tanto tempo retive este email. Por pudor. Porque bastou o que bastou e o assunto está morto e encerrado. Mas não, o assunto estava apenas dormente, à espera de ser revitalizado, qual sequela adormecida num baú de ideias requentadas. Se alguém se lembra disto (e tenho agora a confirmação de alguém não só se lembra, como cita), a experiência de pedir às Produções Fictícias um atestado de participação, vulgo certificado, vulgo coisa gatafunhada à pressa com discutível valor simbólico, revelou-se uma tarefa extremamente desagradável. A ponto de, em resposta a um famigerado email que, numa reclamação legítima, punha em causa a eficiência de alguns colaboradores da empresa, ter recebido a amorosa chamada de toda uma senhora a quem chamaremos "Belita", com não menos ternas palavras que começaram por um mavioso "o seu certificado está à sua espera e temos todo o prazer em entregar-lho pessoalmente", evoluiram rapidamente para chinelices de vária ordem e terminaram com esta lapidar socratinice: "pode ser que arranje trabalho como argumentista em Portugal". Nada disto ficou registado por escrito (para alguma coisa há-de ter servido o João Quadros, verdade?), mas tive o infortúnio de ser apanhado ao telefone pela sanha irreprimível de dita figura. E disso não me esqueci. Estou-me nas tintas. Mas não me esqueci. E é relembrando esse triste momento, precisamente no dia em que dois obstinados companheiros alcançaram o feito de sair das PF com um certificado nas mãos, passando pela Belinha porteira com a dignidade intacta, que "digo na Internet" o que pensei dessa atitude. E porquê? Porque pelos vistos alguém lê. E se incomoda. Good.
Trabalharam juntos em Marvin's Room, quando Leonardo Dicaprio era um jovem actor em ascensão, ainda não a marca global em que Titanic o transformou. Terá sido, apesar disso, das poucas estrelas a quem a fama não traçou um percurso insonso e previsível. Sobreviveu às armadilhas que Hollywood lhe estendeu com The Man in The Iron Mask e The Beach, tendo, desde então, sabido gerir criteriosamente a sua carreira, escolhendo os melhores projectos e os melhores parceiros criativos. Foi na promoção da mais recente colaboração com Martin Scorsese, Shutter Island, concretamente na revista Esquire, que DiCaprio, interrogado sobre o seu trabalho com Meryl Streep, respondeu: She's the only person who looks completely natural. She's the only person who has actually made her character into a real human being who would have an erratic moment because those erratic moments are what make you more human. That was a huge moment of discovery. Meryl may be the greatest actor in the world. Prova do respeito perene que a comunidade artística vota a Streep, a actriz norte-americana recebeu recentemente a 16ª nomeação para um Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. E, da mesma forma que esse reconhecimento é constante, a habitual volatilidade das opiniões, das modas e, acima de tudo, das simpatias geradas pelas campanhas de marketing, fará com que o prémio seja atribuído a Sandra Bullock, que galgou as bilheteiras com The Blind Side. Um filme ancorado na sua interpretação sólida, é certo, mas sem equiparação ao trabalho desta imensa actriz que, a partir de 1982, assiste às cerimónias no lugar cativo de perdedora. Na verdade, e a meu ver, Streep não merecia forçosamente ganhar pelo desempenho em Julie & Julia. Tê-lo-ia merecido por A Cry In the Dark (nomeada), The Hours (não nomeada), Adaptation (nomeada como Melhor Actriz Secundária), ou The Bridges of Madison County (nomeada). Não seriam essas mais do que razões para lhe prestarem, 28 anos depois, e aos 60 de idade, a devida homenagem?

Naquilo que se poderá explicar apenas como uma bichice catártica, hoje senti um arrepio ao ouvir uma música cantada por Shirley Bassey. Perdão, Dame Shirley Bassey. A canção em causa está incluída no último disco de originais deste clássico camp britânico. Alguns dirão que é mais que isso, reconheço o meu desconhecimento da obra da senhora, mas, para mim, Bassey será sempre plumas, lantejoulas, James Bond, notas altas e prolongadas (o que no showbiz anglo-saxónico é conhecido por "belting"), e uma música com os Propellerheads algures nos anos nineties. Não sei por que raio esta melodia, cantada com uma contenção inesperada, me tocou, mas não é algo que aconteça já com muita frequência. Com música e com filmes. Não ajudou ao embaraço saber que "This Time", o tema em causa, é assinado por Gary Barlow, mas minimiza o estrago constatar que este trabalho foi bem recebido pela crítica, e que entre os colaboradores de The Performance, o álbum, se contam Tom Baxter e Rufus Wainwright. Qual Gloria Gaynor renascida e sem patins, a Dama entoa:
Na sequência de tão edificante postura, e como se nada se tivesse passado, recebi um email avisando-me de que os certificados se encontravam nas instalações das PF, e que "todos" os poderiam ir levantar (que isto de ir aos correios é uma maçada). Assim sendo, algures em 2008, passaram-me estas considerações pela vista: