22.10.07

A actriz guerreira

Quase todas as pessoas com quem falei que viram The Brave One, de Neil Jordan, referiram-se a ele como “o filme da Jodie Foster". Já tinha reparado nisso com uma atenção mais clínica e fui comprovar aquilo que sempre achei “no filme da Jodie Foster”. Lá estavam aquele misto de fragilidade e de determinação feroz, o olhar magoado, os lábios tensos e a voz profunda, o rosto de mulher madura com contornos intemporais de miúda reguila, a combinação estranhamente carnal de feminilidade e de fisicalidade seca. Não é de estranhar que Foster escolha eminentemente dramas e histórias complexas. Ela própria o disse: "Normal is not something to aspire to, it's something to get away from". As suas incursões na comédia não foram mal sucedidas (Maverick, em 1994; The Dangerous Lives of Altar Boys, em 2002) mas terão sido sobretudo motivadas por curiosidade lúdica e pelo prazer de exercitar outros músculos. Tem-se a impressão de que os filmes são pequenos demais para tamanha intensidade. Uma intensidade que perturba, quase fere, porque a exposição emocional da actriz é tremenda e a busca da superação constante. Ela domina-
-nos com autoridade pois o trabalho nunca está feito e não é feito sozinho. A actriz dá-nos pistas e nuances preciosas para que possamos construir a personagem e, ao mesmo tempo, entrever a personalidade que a constrói. Aí é generosa. Fora da tela, é rara, é um enigma, e faz todo o sentido que assim seja.

Poucos são os actores, hoje em dia, que valorizam tanto uma história: na compreensão polivalente dos diálogos, no entendimento do tom que a cena requer, na construção exemplar do pathos, na interacção com as demais personagens… Melhor do que ninguém, o realizador de The Brave One, Neil Jordan, e o co-protagonista, Terrence Howard, avaliam o impacto de Foster:

"She's got this remarkable thing where she quite effortlessly holds your imagination. She puts herself in that place and without question, as a member of the audience, I am there with her. And I don't know how she does it." (Neil Jordan)

"She’s Marlene Dietrich, Glenn Close, she’s Marlon Brando, all of them combined. Fifty years from now, the people who can say they worked with Jodie Foster and have that on their resume, I can see my grandkids looking at it and saying, ‘You worked with Jodie Foster?’ and them being amazed, like I marched with Martin. That’s what it was like for me.” (Terrence Howard)

É óbvio que há algo no magnetismo de um actor que não é traduzível e esse é um dos grandes mistérios e prazeres do cinema. O talento e a força de uma presença não escamoteiam, porém, as fraquezas essenciais de um filme. No caso de The Brave One, as ressonâncias que o desempenho de Foster desencadeia no seu (vasto) público extravasam os limites que a história lhe impõe. A esse nível teriam lugar outras apreciações, que já poriam a fita de Neil Jordan ao nível de uma banal história de vingança com duvidosa legitimidade sociológica e moral. No que me toca, o máximo que conseguiu foi dar umas amolgadelas na percepção da impotência perante os actos crescentes de agressão gratuita nos espaços urbanos, e nas consequências profundas que estes podem desencadear. Mas o esforço de tradução está todo nos ombros de Jodie Foster, porque o argumento peca por simplismo e alguma espectacularidade despropositada. De qualquer modo, a ver, nem que seja apenas pelo desempenho da sua actriz protagonista. Este, como outros, é “um filme da Jodie Foster”.

Sem comentários:

Arquivo do blogue