19.7.07
Plexo solar
“Esta ânsia desgovernada de atenção poderá não fazer sentido. É estéril, roça o patético, não passa de um pretexto para que a vida pulse quando e como eu quero. «Não é assim» mas também não poderia ser de outra maneira. Contigo não funciona. Assim, nesse plexo em que tu vives e que eu desafinei por momentos. Mas não foi terapia ocupacional e tu curtes demasiado a tua neurose hedonista para fazer distinções e aceitar desafios. Porque és medroso. O tempo que perdi contigo não passou disso mesmo. Nunca voltou atrás porque só houve intenções, uma cobardia inconclusiva e total ausência de sentido prático. É engraçado perceber que nunca soube o que fazer. E agora que deixou de me interessar, mais percebo que não era suposto fazer coisa alguma. Aí reside a diferença essencial entre sentir e insistir. Não quero a tua atenção. A minha ânsia é desgovernada e, por vezes, atropela-se na sua excitação. Mas não te vê, não é dirigida a ti, realmente. Está sempre mais à frente, mais apressada, nublada, sim, tu o disseste. Agora já não a vês e a tua atenção pode recair em assuntos de real valor. Eu vou mudar o tempo e a paisagem e continuar a ansiar. Porque, não, não pode ser de outra maneira.”
(Pintura de Jasper Johns)
Para M
"One need never leave the confines of New York to get all the greenery one wishes – I can’t even enjoy a blade of grass unless I know there’s a subway handy, or a record store or some other sign that people do not totally regret life."
Embora não mereças porque as nossas combinações caem quase sempre por terra. Bom descanso na província e não te esqueças de que não há metro. Até logo.
Excerto de Meditations in an Emergency, Frank O’Hara, 1957
Sardinhas & laranjas
I am not a painter, I am a poet.
Why? I think I would rather be
a painter, but I am not. Well,
for instance, Mike Goldberg
is starting a painting. I drop in.
"Sit down and have a drink" he
says. I drink; we drink. I look
up. "You have SARDINES in it."
"Yes, it needed something there."
"Oh." I go and the days go by
and I drop in again. The painting
is going on, and I go, and the days
go by. I drop in. The painting is
finished. "Where's SARDINES?"
All that's left is just
letters, "It was too much," Mike says.
But me? One day I am thinking of
a color: orange. I write a line
about orange. Pretty soon it is a
whole page of words, not lines.
Then another page. There should be
so much more, not of orange, of
words, of how terrible orange is
and life. Days go by. It is even in
prose, I am a real poet. My poem
is finished and I haven't mentioned
orange yet. It's twelve poems, I call
it ORANGES. And one day in a gallery
I see Mike's painting, called SARDINES.
"Why I Am Not a Painter", Frank O'Hara, p. 1971
(Quadro: "Sardines, de Michael Goldberg, 1955)
18.7.07
É meu!
Revista à portuguesa
As coisas que a gente lê. Bom, eu, pelo menos, mas são ossos do ofício, como tal irão desculpar-me. Joaquim de Almeida declara que “o Banderas não é melhor” do que ele. Lendo o artigo conseguimos descortinar o sentido de tão enigmática declaração (que diz respeito à nobre arte de representar) e somos levados a concordar com este artista internacional. São ambos maus. Banderas sempre tem um passado redentor com Almodóvar. Joaquim de Almeida fez “A Profecia Celestina”. Direito ao inferno sem passar pela casa da partida. Vejo também um destaque às afirmações de Maya, que pelos vistos “provou” umas cenas quando era nova. Surpresa? A amiga é astróloga, taróloga, cartóloga, angeóloga, taralhóloga, paineleira de inanidades na TV-lixo, “uma das figuras mais prestigiadas e mediáticas do mundo esotérico nacional”, de acordo com a página de astrologia do sapo.pt e, a ver pela sua indumentária habitual (mais acessórios), possível dominatrix. Não apenas isso como põe umas unhacas viciosas a interagir com um telemóvel num anúncio de sobressaltar a depravação… E tenho para mim que os seus paizinhos não a baptizaram com esse nome tão festivaleiro, ó cara de Francelina. Qual surpresa? Não só as deve ter provado como muito seguramente as inclui até hoje na sua dieta habitual, com umas coisas novas à mistura.
Duas astro-saliências a varrer para longe, o quanto antes.
Ave rara
Não vi o concerto no Teatro-Circo nem vi o concerto no S.Jorge. Na verdade, nunca o ouvi ao vivo e só recentemente descobri a sua música. Comecei pelas capas dos discos, que são por si só um bom motivo para os possuir. É louco, o Andrew, claro. Tem um talento raro, uma facilidade inusitada em tudo: na voz, nos arranjos, na escrita, na atitude, que é de facto um prolongamento das suas composições. Ele próprio é uma composição singular e excêntrica, que só se situa ali, no centro-oeste do seu universo. Por isso quase nunca é simples descortinar o que pretende dizer, a única solução é mergulhar. Ele está disponível e o que tem para dar, partilha com prazer.
17.7.07
Queres uma lasca?
“Ouve, as minhas referências podem não ser incrivelmente abrangentes, podem até nem sempre ser as mais oportunas ou tão certeiras quanto as tuas, colhidinhas no momento… Mas estão tão mais bem arrumadas... E além disso o acesso não é óbvio nem repentino, porque está sistematizado. Com denodo, com convicção. Julgas que fazer disso uma dialéctica resistente ao tempo é fácil? Vale o seu peso em ouro! Neste caso, o meu, camarada.”
16.7.07
Galos e galinhas ao virar da esquina
Perto de minha casa há uma loja de roupa muito conservadora, muito tradicional, entre o serôdio mais vintage e o bota-de-elástico inabalável, que assenta como luva de pelica às velhas carcaças da zona. O ritual é pouco variado. As boas das senhoras, com aquelas estalagmites laqueadas na cabeça, avançam de pincher (ou welsh corgi ou poodle ou chihuahua, ou qualquer outra raça suficientemente desprezível) pela trela ou na bolsa, enumerando as mazelas ao marido ou à amiga e justificando com o tempo chuvoso que se faz sentir a compra de mais uma mantinha bordada, de uma camisolinha interior, de umas meinhas de lã com losangos ou de um soutiã duplamente alcochoado. Não interessa para quem compram, o que importa é que estão a proteger a família destas desagradáveis alterações climáticas. Acho bem, quem é prevenido como elas viveu o suficiente para ter direito a empanturrar as rugas de base e a ostentar um cabelo oval sem cor perceptível. Até parece que tenho algo contra estas velhinhas de faringe carcomida pelo excesso de vogais nasaladas. Não, não tenho. Confesso que o facto de ocuparem todo o passeio quando deambulam no seu passo incerto e de se demorarem uma eternidade na caixa do Pingo Doce, ignorando a existência dos demais consumidores (normalmente apressados), a refilar pela ausência de stock do desodorizante Lycia, me dá vontade de as correr a varapau. São casos pontuais, levados a impulso pré-homicida quando os cães porta-chave enchem o passeio com o seu peso em merda perante o olhar complacente das donas. Mas enfim… Acalma-me o saber que aquelas córneas rançosas não verão melhores dias. Porquê chatear-me com criaturas cujo último prazer na vida é devorar queques Dan Cake em frente à TV? Adiante. Esta loja é peculiar: exibe uma obsessão por galos de Barcelos que começa a roçar o pornográfico, como se pode constatar nas fotos adjacentes. O que não percebo é se é uma manifestação de cultura pátria, um fétiche ou, pura e simplesmente, um sucesso de vendas por ali. O que, em plena Avenida de Roma, não deixa de ser uma saborosa ironia.
13.7.07
Variedades de sabor
Espectáculos glamourosos, atrevidos e sofisticados, Bacalhau à Zé do Pipo, guarda-roupa sumptuoso de alta fantasia, Bacalhau à Lagareiro, números sensuais, elegantes e intensos, Bacalhau à Brás, apresentados com arrojo e furor, Bacalhau à Lagareiro, personagens de grande popularidade sempre vestidas com extravagantes trajes, Moqueca de Bacalhau ao Rio Minho, brilho, cor e sensação, Bacalhau à João do Buraco, deslumbrantes números musicais, Bacalhau Albardado à Moda de Águeda, grandes êxitos internacionais, Bacalhau Como Nós Gostamos, interpretação à moda com bailarinos hip-hop, Ensopado de Bacalhau, estabelecimento sério e reputado, Bacalhau à Laurentina. Estamos abertos às 2ªs, late night show com Madame Valéria, Arrozinho de Bacalhau Malandro.
Na foto: (da esquerda para a direita) Laurentina, Madame Valéria e Dominguinhos, mestre de cerimónias.
Um homem na cidade
Na minha rua vive um homem com quem me cruzo frequentemente. É alto e muito magro. “Espigado”, acho que lhe assenta bem. É surdo-mudo e está a ficar cego. Anda sempre com uma bengala, acompanhado por um cão e uma cadelita rafeiros. Às vezes, quando estou a chegar a casa, passo pelo clube recreativo, e lá está ele sentado, a mimar os cães. Vejo que é acarinhado pelas pessoas, mas a relação dele com o mundo passa sobretudo pelos animais. Estes tomam uma postura de defesa quando passeiam com ele. Não são agressivos, antes correm freneticamente em torno dos transeuntes que se aproximam, cheirando, inspeccionando, tentando perceber as suas intenções. Sei que já teve quem o conduzisse pela mão. Com a mão no ombro, mais propriamente. Agora só tem os cães. Não sei se é boa pessoa ou má pessoa. Tem um ar seco e ignoto, como um ponto de exclamação sem frase. Ontem à noite, na plataforma do metro perto da minha rua, vi-o descer as escadas com a ajuda providencial de um senhor simpático, na estação vazia. Não trazia os canitos a saltitar-lhe aos pés, mas vinha muito agarrado a um cachorrinho. Não se percebia quem estava mais assustado, se ele, se o cachorro. Mas a atitude de ternura e de protecção daquele homem sozinho e desprotegido encheu-me de esperança. Por ele. E por mim. Naqueles percursos a horas tardias em que o vazio me assola não me vou esquecer de que pode haver sempre amor para dar e pode haver sempre amor para receber. Tem de se procurar. Tem de se saber dar. Tem de se saber receber.
(Foto de Ian Sanderson)
11.7.07
In the eye of the beholder
"Nick Guest: I just think he's the most beautiful man I've ever met.
Catherine Fedden: Darling, you don't fall in love with somebody because they're beautiful. People are lovely because we love them, not the other way round."
The Line of Beauty, Alan Hollinghurst
("Cabeça de homem", desenho de Candido Portinari, 1938)
Flatulência criativa
Pior o caso quando o anúncio é gerado por criativos profissionais. Haja maior ou menor intervenção do cliente no produto final, este exemplos dão razão às medidas tomadas pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab.
Combustão espontânea
Há anunciantes que não pretendem sujeitar-se ao jugo das agências de publicidade. Ou porque não têm orçamento, ou temem os métodos, ou têm muita, muita pressa, ou porque (horror!), crêem ter ideias melhores e estão convictos de que as irão conseguir executar com proficiência. É um tipo de publicidade espontânea, nascida no espírito de um qualquer desenrasca com muito pouco gosto e muita crença no retorno fácil. Face a uma poluição visual tão intensa e reiterativa, a presença de alguns destes exemplares – em montras, jornais e outdoors, haja guito para isso – acaba por ser um intermezzo cómico. Involuntário e, por isso, não produtivo. Comprove-se.
10.7.07
Provérbios: a verdadeira alma portuguesa
"Por Santa Luzia igual é a noite ao dia."
Tradução: a Santa está-se a cagar, é uma depressiva ou ocupa um alto cargo governativo. Não! É a Santa que protege e resolve todos os problemas relacionados com os olhos das pessoas. Recebeu de Nosso Senhor esta linda missão porque, como conta a tradição, por não aceitar falsos deuses, foi presa e arrancaram-lhe os olhos. Porém, no dia seguinte ela estava com eles perfeitos. Ficou com os outros para recordação. A sabedoria popular é muito traiçoeira. E muito gráfica, também.
De ideologia em riste
Este senhor de olhar ágil e incisivo compareceu ontem ao debate da RTP1 com os candidatos à Câmara de Lisboa, vindo directamente da adega onde esteve trancado a amadurecer. Dono de um magnetismo quase animal e de um poder discursivo pré-trombótico, Pinto-Coelho brindou os velhacos concorrentes e a população em geral com as coisas que lhe passam num ápice pela cabeça. Com um facies estranhamente assimétrico, que oscilava fortuitamente entre a indignação, a incredulidade, o horror, o susto e o ardor intenso, sobretudo quando intervinha, o candidato impressionou os oponentes com o estado avançado do seu radicalismo. Enquanto tentava não concluir ideia alguma, Pinto, o Coelho, herói do PNR, brilhava quase tanto quanto a sua testa luzidia e preocupantemente enviesada. Vencendo a severa descoordenação verbal e motora que o afligia, provou que nem a ciclotimia e muito menos a política impedem um homem de pôr cá para fora o que tem lá por dentro. Independentemente do que seja.
Não sei se os bernardos e as constanças que fazem desenhos para a campanha terão catrapiscado alguma referência especial, mas ao olhar para o visual deste divertido partido vislumbro um cruzamento entre a sinalética de um aeroporto chinês e o logo do MFA (sendo que entretanto o pacman engoliu o cravo). Hu, kinky!
Já agora, não querendo ser desmancha-prazeres, parece-me que a grande maioria dos portugueses tem perfeita consciência de que Lisboa é, efectivamente, uma cidade portuguesa. Em todo o caso, bem hajam.
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