10.1.08

O fumo dos outros



Uma parte das minhas melhores recordações habita no fumo dos tempos. Das salas do CITAC, dos corredores da RUC, das conversas no Tropical, nos intervalos de rodagem, nos jantares de confrades ou nas conversas íntimas, quando um cigarro apagava a hesitação e estendia a conversa. E no entanto não encontro nada de saboroso no tabaco. Não tenho memória de coisas boas regadas a álcool e cigarros, muito menos das ressacas e do cheiro entranhado na roupa e nas papilas. Mas quando se partilham momentos temperados com nicotina a ideia preservada é amigável, tendenciosa, afectiva, até. Há qualquer poesia suja no acto de fumar. Algo de profundamente paradoxal. Um gesto destrutivo e convivial, defensivo e vocativo, que nada tem a ver com a pose estudada do film noir mas se revê organicamente em todas as formas narrativas contemporâneas. É fraqueza e abandono, solidão acompanhada, dependência, tudo muito humano. Não existe, como é óbvio, nenhuma intenção de prejudicar o outro, que é quase a forma como hoje se encara a situação. A coabitação deveria ser pacífica, não vivêssemos nós num caos de impudência cívica. Ainda assim acredito que seria possível um meio-termo, sem termos de engolir valente fumarada na hora de levar o garfo à boca, no restaurante em cunha mesmo ao virar da esquina. Especialmente de meia dúzia de desconhecidos a expurgarem as tensões do meio da tarde. Eu não fumo, não defendo o fumo dos outros, muito menos as tabaqueiras, mas Portugal, opresso pelos seus brandos costumes e vergado pelos problemas mais irrisórios, desenvolve neuroses frequentes. Esta é apenas mais uma.

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