6.12.11

BD para a vida












Não sei que tipo de barreira se criou entre mim e a literatura 'convencional'. A bem dizer, ela sempre existiu, pois a banda-desenhada enquanto forma de arte narrativa sempre se me afigurou bem mais sedutora. Desde miúdo, graças aos intermináveis tomos de capa dura cinzenta com os muitos números da Tintin, Spirou e Jacaré coleccionados pelos meus pais. Em particular, claro, da Tintin, com o melhor da escola franco-belga. Em férias, os dias passavam e terminavam inevitavelmente por ali, de nariz enfiado nos calhamaços recheados de surpresas em continuação. Com o passar dos anos, desbravar texto passou de reconforto num miserável início de adolescência a obrigação curricular, converteu-se num denso mato académico e, eventualmente, cristalizou-se por tempo indeterminado em expectativas diversas. As Tintin deram lugar nas estantes à (A SUIVRE), e ao imaginário infanto-juvenil sucederam-se as habituais premências da entrada na idade adulta. A BD foi substituída por interesses emergentes que não incluiam o sexo oposto, para mal da minha maturação no interior de Portugal em meados dos 80, mas antes se realizavam num interesse obsessivo por automóveis (da qual são infeliz testemunha as páginas truncadas de "Michel Vaillant", nos mesmos tomos de capa rija) e, posteriormente, numa mais saudável curiosidade por todas as coisas cinematográficas, partilhada e alimentada pelo meu irmão mais velho. A BD lá em casa amadureceu ao nosso lado mas foi ignorada por demasiado tempo, excepção feita, não sei bem porquê, a "Valérian e Laureline", "Blake & Mortimer" e ao genial e psicadélico Fred, por quem a minha mãe nutria especial afecto. A (A SUIVRE) já não existe mas apetece-me reabilitar a sua memória e recuperar o tempo perdido. Não fossem o gosto e curiosidade do meu pai ao longo dos anos (e também a gulosa biblioteca da Mafalda R., com os seus muitos volumes da Love and Rockets), jamais teria tido oportunidade de conhecer Jiro Taniguchi (Le Gourmet Solitaire), Art Spiegelman (Maus), Craig Thompson (Blankets) ou as novelas gráficas de Gipi, descobrindo, quer em termos plásticos quer a nível de escrita, propostas infinitamente mais aliciantes do que os trabalhos de Moebius, Bilal e Milo Manara, sendo que "Corto Maltese", apesar da adesão generalizada que observava à minha volta, sempre me foi estranhamente indiferente. Enfim, não sei onde isto me leva. Ou melhor, sei. Nunca me cansarei de agradecer a possibilidade de contactar com outra forma de contar histórias, que possivelmente me resgatou a um permanente auto-exílio literário. O rigor descritivo de Taniguchi, a poesia de Blankets, a humanidade e nobreza de Maus, a beleza das aguarelas de Gipi, que vivem muito para além da precisão das suas palavras... São uma dádiva patriarcal a riqueza destes imaginários, a diversidade dos estilos e a paleta de emoções retratadas com simplicidade, beleza e notável sentido de ritmo – onde os bons filmes e as boas BD claramente se cruzam. A uma nova fornada, em breve. Será o meu presente de Natal.

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