27.11.07

Visadron













Quando era puto adorava carros. Coleccionava aquelas miniaturas da Matchbox e sucedâneos, que já toda a gente sabia que me devia dar nos aniversários e no Natal porque era a única coisa a que realmente ligava. As minhas brincadeiras com os carrinhos eram absolutamente apaixonadas e solitárias. Não tolerava que um puto estúpido qualquer andasse a raspar a tinta dos meus tesouros na soleira das portas, que espremesse a delicada suspensão com os dedos sapudos e a inconsciência de catraio, ou, pior, desatasse aos choques entre uma ambulância Ford e um descapotável Mercedes. Além disso, como tinha muitos, era fácil meter um par ao bolso sem se dar logo por isso. Estávamos em Abrantes, os índios das ruas de baixo invejavam os brinquedos dos burgueses da Rua de Angola, já se sabe.
Gostava de carros, ninguém diria. Nunca desejei ter um BMW nem um Lamborghini, sempre me estive nas tintas para o status e os seus carrões e, de qualquer forma, preferia automóveis mais frágeis com um design peculiar e adereços inovadores. Nesse aspecto, os Citroën levavam a palma. Formas fluidas, suspensões hidráulicas e hidropneumáticas, ópticas traseiras em cunha, conta-quilómetros de tambor, limpa pára-brisas de braço único, volantes reguláveis, satélite com os comandos agrupados, permitindo a comutação de funções sem tirar as mãos do volante… Maravilhoso mundo novo. Até o símbolo da marca era insólito, misterioso. Tínhamos uma carrinha GS e quando o meu pai ia à tabacaria, eu ficava no carro e saltava para o assento do condutor a simular uma aventura qualquer. Vir a conduzir uma nave daquelas, no entanto, parecia um sonho inatingível. Modelos como o GS, o GSA, o CX e o BX eram autênticas obras de arte com conta-rotações e emissão de CO2. Mas havia um lugar muito especial no meu coração para outro modelo. Um modelo que recuperava a tradição de freako-versáteis como o 2CV, o Mehari e a Dyane e que antecedeu, infelizmente, a massificação de latas Citroën como o AX e o Saxo, até ao inefável C1, viatura que parece ter sido encomendada pelas lojas Imaginarium.
A Filomena, amiga dos meus pais com um fraquinho por gajos difíceis, alimentava-me o vício mas nunca, nunca conseguiu encontrar a miniatura de um Visa para me oferecer. A alegria que era galopar no primeiro e, depois, no segundo Visa da Filomena, com a sua suspensão mole e o carácter oscilante, manipular o satélite de comandos, sentir a envolvências dos estofos e escutar o inconfundível gorjeio dos 988 centímetros cúbicos, com 45 cavalos em sobresforço determinado (nas subidas, sobretudo)… E jamais, durante a infância, tive a sorte de fazer do Visa o centro da minha colecção. Pobre da Filomena, tão desconsolada. Durante anos, sempre que me via, era um assunto que vinha à baila, mesmo quando os meus sentidos se haviam há muito entregue a outras seduções.
Embora a tara por carros se tenha acentuando nos primeiros anos da adolescência, dando origem a alguns episódios tresloucados – arrancar todos os anúncios das Première do meu irmão Pedro ou recortar as tiras do “Michel Vaillant”, arruinando uma dúzia de revistas Tintin ao meu pai – com óbvias consequências trágico-
-cómicas, continuei a não desejar um Ferrari nem tão-pouco um Alfa Romeo. Continuava a querer um Citroën e, de preferência, um Visa último modelo.

Hoje reencontrei-me com ele, numa pesquisa aleatória e, claro está, foi como colírio para uns olhos cansados de poluição visual, carros sem inspiração, sem história nem futuro.

3 comentários:

Anónimo disse...

Dyane e CX, sem dúvida... salmonete-colírio;)...

um livro sobre evolução disse...

epá! eu sabia dessa tua paixão por carros, ainda apanhei o seu arrefecimento, mas desconhecia o fascínio por visas!
é que já podia ter promovido uma almoço-convívio entre ti e o primo miguel, outro fanático do visa. ele ficou com o do meu avô, uma relíquia que vive na carvalha.
lembras-te do meu? muito feio, castanho. devia ser um modelo mais recente, não era nada parecido com os das fotografias...

João disse...

Este acesso de nostalgia só pode querer dizer que estou a ficar velho. Por outro lado é bom ter alguém com quem partilhar memórias e referência. Right, M., oh vanished one.

Eu lembro-me vagamente do Visa, sim, mas já estava de saída quando eu entrei. Sim, sim, castanho e feioso, já tinha perdido a identidade e, claramente, o 'momentum'.

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