Quem, incauto, lesse o Jornal de Negócios de ontem – como eu, que não vi nem li nada previamente e o apanhei no trabalho –, ficaria inclinado a pensar que Isabel Choné é uma mártir (apesar de, aparentemente, apenas um corropio melindrado de tias e tios ter tomado a sua defesa, o que dificulta a empatia) e que os acontecimentos frente à Assembleia da República, em dia de Greve Geral, se reduziram à actuação de um grupo de celerados que foram valentemente rechaçados por uma polícia que demonstrou notável contenção perante uma violência brutal. Por acaso, verificou-se que a dita intervenção foi essencialmente uma retaliação raivosa e indiscriminada. Não será legítimo pedir estoicismo a indivíduos agredidos sem apelo nem agravo durante mais de uma hora. Não. Mas é por isso que são “agentes da autoridade”, treinados, comandados e (mal) pagos para analisar as situações e agir coordenadamente, com discernimento e estratégia. Para dar cacetadas a torto e a direito, com o cérebro toldado pela adrenalina, as frustrações e os recessos sortidos do subconsciente, qualquer barrasco serve. Apesar de cada vez evoluir mais nesse sentido, a realidade social ainda não é uma experiência de Milgram colectiva. Não é um reality show, onde se fabricam conflitos para entretenimento de audiências dessensibilizadas. É o agora e o depois com um nível de responsabilização e consciência que nunca como hoje foi tão agudo em democracia. E no entanto houve criaturas que avaliaram a situação escrevendo (numa crónica com o alcandorado título de "Não passarão!"): “(…) A legitimidade para decidir a nossa vida colectiva está ali [no Parlamento]. Não está na rua. (…) Em Democracia, o poder não se dita a partir da rua.” Claro que não. Porque enquanto ficas com a peida sentadinha a cagar postas ridículas, vives a tua democracia a ser enganado, roubado, enxovalhado, desrespeitado como indivíduo e cidadão, sujeito a toda a espécie de imposições anti-democráticas, com o intuito já pouco disfarçado de aniquilar as estruturas básicas do país e de hipotecar qualquer possível reabilitação futura, vendo a mentira e a corrupção institucionalizarem-se e serem sancionadas pelos próprios “representantes” que a deveriam combater, confrontado com toda a espécie de assimetrias abjectas alimentadas com a carcaça dos desfavorecidos, tendo conhecimento diário das acções e comentários de uma corja avessa à honestidade, ao pudor e à eficácia, que não raras vezes deixa escapar um arroto gordo de auto-satisfação e de profundo desprezo pelas 15 pessoas que saíram à rua na altura devida para, porventura, a eleger. Como recompensa, porque não contribuíste para a concentração – e tiveste a sorte de não ir a passar por acaso –, evitas uma porradona da bófia e moves o teu pescoço naturlamente inerte em aprovação das palavras firmes e hirtas de Miguel Macedo, o Estudante Pálido desta farsa.
Os sicários, profissionais ou não, que despoletaram aquela desastrosa reacção, não eram um exército, não tinham um plano diabólico e meticulosamente traçado para rebentar com o Parlamento, não eram uma ameaça intransponível nem estavam infiltrados clinicamente entre os manifestantes. Podemos apenas imaginar o que seria se estivessem, e que tipo de reacção iriam então originar nas entidades encarregadas de garantir a ordem pública.
A cadeia de comando de tudo isto não está na rua, pois não, isso com certeza. E os criminosos que atiram pedras talvez merecessem outra avaliação se escolhessem devidamente os seus alvos. Do mesmo modo que os senhores polícias, ao investir na direcção exactamente oposta, poderiam
contribuir com a punição de alguns criminosos, esses sim organizados e de alto calibre. Acontecendo o que aconteceu, estão ambos do mesmo lado da barricada. O das bestas.
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