8.4.09

Futuro cinzento



Aqui reproduzo o texto do arquitecto Miguel Toussaint públicado no Público, edição de 22 de Março, a propósito da barbárie perpetrada sobre a casa projectada pelo arquitecto António Varela, com azulejos de Almada Negreiros, na Rua de Alcolela, no Restelo. Um local que deveria ser motivo de orgulho nacional e de possível peregrinação turística está nas mãos dos trafulhas mais broeiros e entregue à inanidade bichosa da CML. Será um dos raros casos a conhecer divulgação, razão pela qual exige a nossa intervenção.


"Mais um atentado ao património arquitectónico e artístico do século XX Recentemente foi denunciado o início da demolição clandestina de uma moradia na Rua de Alcolena no Restelo, bairro planeado por volta de 1940 por Faria da Costa, arquitecto urbanista por Paris, e que foi sobretudo ocupado, ao longo das décadas seguintes, por habitações unifamiliares de grandes dimensões, com um núcleo de habitações económicas e um notável conjunto habitacional/comercial projectado por Raul Chorão Ramalho. O bairro espraiou-se pela cerca do convento dos Jerónimos da qual restaram duas capelas, uma delas envolvida por um jardim projectado por Ribeiro Telles. Nesta vasta área, sobretudo habitacional, está o resultado do labor de muitos eminentes arquitectos que trabalharam, em meados do século XX, nomeadamente nessas grandes moradias encomendadas por gente com generosa capacidade financeira, que fizeram do Restelo um local privilegiado para morar em Lisboa, produzindo um conjunto de excelentes exemplos da arquitectura portuguesa moderna. No entanto, ameaças pairam sobre eles. Por exemplo, ainda há muito poucos anos uma moradia na Avenida das Descobertas, projectada por Francisco Conceição Silva, esteve na iminência de ser destruída, tendo-se logo desfeito o mural pintado por Júlio Pomar, bem visível da rua, que desapareceu para sempre. A casa acabou por ter uma intervenção mais qualificada, se bem que perdendo os acabamentos e cores originais. Agora outro caso semelhante acontece. A moradia, projectada em 1951 por António Varela - arquitecto importante da geração modernista, mas já reconhecendo o Movimento Moderno, tal como o seu colega Jorge Segurado com quem trabalhou -, começou a ser destruída e logo pela retirada dos painéis em azulejo criados pelo muito conhecido artista Almada Negreiros, autor de vários revestimentos deste tipo, sendo assim um dos responsáveis pelo renascimento de azulejo na obra arquitectónica em meados do século XX com o apoio dos arquitectos, com quem trabalhou em relação coordenada. Nesta casa, como em outros exemplos, os painéis foram concebidos para locais precisos e em íntima integração com a concepção arquitectónica. Para além disso a sua abundância, extensão e significado tornam este exemplo excepcional na obra do artista. A sua retirada é assim um atentado ao todo original e uma perda de testemunho desse reavivar do azulejo, então considerado elemento proeminente da tradição do país, mas também material arquitectónico capaz de ser moderno e útil para uma arquitectura renovada, depois da investida nacionalista do Estado Novo. Nesta casa existiam vários painéis em azulejo, alguns deles revestindo varandas inteiras, e bem visíveis da rua, um já desapareceu e outros dois foram danificados. Mas a casa merece a atenção culta para além dos azulejos e outros elementos artísticos/decorativos. Foi concebida para a encosta onde está implantada e para o sítio que ocupa. Da rua sobe-se por duas escadas exteriores que enquadram a garagem e um curioso tratamento do talude em xadrez com placas em pedra, já significativo dos valores iniciáticos que os azulejos bem representam, bem como as peças cerâmicas, de outro artista, que envolvem a porta da entrada principal, ou a escolha e disposição das cores e desenhos dos acabamentos no interior. E é uma grande moradia com o seu rés-do-chão ocupado pelo salão e zona de serviço, e duas zonas íntimas no primeiro andar, originalmente uma para a dona da casa e outra para o seu filho. Aqui a afirmação iniciática está outra vez presente. Mas uma das mais interessantes características da casa é o facto de ser coroada por um vasto terraço coberto por vasta laje, em parte aberta por pérgulas, com amplas vistas sobre o estuário do Tejo. O arquitecto respondeu a um programa de moradia isolada no seu lote, mais complexo e exigente que o habitual, estando atento aos particulares interesses de quem iria lá morar, e projectando, até aos mais cuidados pormenores, numa encosta no bairro do Restelo. O terreno envolvente foi moldado de modo a acolher a casa e sujeito a projecto específico de jardim que incluiu também algumas intervenções artísticas. Gravada num revestimento em pedra está uma citação do poeta Paul Éluard e sob ela a assinatura do arquitecto datada de 10 de Fevereiro de 1954, data de aniversário do filho e ano de inauguração da casa. Assim foi sublinhada a conclusão de uma obra em que os donos da casa, o arquitecto (e sua equipa) e os artistas convergiram para criar uma casa excepcional. Tudo isto e muito mais que os estudos, que estão a decorrer sobre a casa, irão revelar levam a reclamar a sua classificação como bem cultural colectivo e respectiva preservação. A cidade de Lisboa não se pode dar ao dúbio luxo de desperdiçar um tal exemplo de qualidade arquitectónica e artística e de um importante testemunho do renascimento do uso do azulejo num tempo de afirmação moderna, que, em Portugal, significou o fim das veleidades culturais do Estado Novo."

4 comentários:

M. disse...

O país está cheio de atentados. Algumas PESSOAS são verdadeiros atentados. (E então no Twitter nem te digo. Arregalam-se-me os olhos, em vários sentidos. Ele é o atentado à língua, o atentado à inteligência, à paciência... E não me sai da cabeça o refrão da canção: and everybody on the island was somebody from tv, and everybody on the island was saying look at me, look at me, look at me.) Claro, também há quem tente passar despercebido, de vez em quando, para uns pequenos atentados. Eu vou assinar a petição, sim. Mas pergunto-me se a casa terá, ainda assim, um final feliz. Tiro-te o chapéu, em todo o caso e mais uma vez, for doing the right thing.

João disse...

Não me tires o chapéu, eu só apanhei o comboio. Deveria fazer algo de verdadeiramente significativo, somehow, somewhere...
(Concordo, quanto a certas pessoas.)

M. disse...

O que é verdadeiramente significativo, para ti?

João disse...

Coisas que não escrevo num blog.

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