26.3.08
Epifania semiótica
Se os silenciosos nunca foram o meu tipo de pessoa, isso tem a ver com uma convicção, constatada amiúde, que quando instados a isso não revelam grande capacidade de elaboração. Note-se que estou a generalizar e que tal pode dever-se a inúmeros factores, entre os quais uma educação espartana (até nas palavas) ou repressiva, falta de auto-confiança, timidez a raiar a patologia, desconfiança profunda, inabilidade vocabular... Não significa, contudo que, em certas e determinadas circunstâncias, tais indivíduos não devam conseguir articular uma meia-dúzia de frases com alguma picardia ou expressar o seu apreço ou desapreço por algo para além do "é giro" e do "não gosto muito". Estou mal habituado, já sei. Provenho de uma família onde quase todos gostam muito de falar e de se fazer ouvir. As minhas relações mais significativas estão fundadas num intercâmbio onde levo claramente a palma de ouro da verborreia. Pessoas de valor muito raro que nunca se muniram da frieza para me dizer: "ok, agora está lá caladinho". Na verdade, acho que aconteceu um par de vezes. Só aumentou o meu apreço por elas. Discorrer sobre si próprio já é outra história. É certo que também é isso que contribui para que quem me conhece, bom, me conheça verdadeiramente. Não deixo grande espaço para o mistério. Na mesma ordem de raciocínio, preferia por vezes que me dessem uma paulada na cabeça, me sedassem e amordaçassem a um canto. Se mordesse os lábios de cada vez que me arrependo/i de expor sentimentos e ideias já não tinha beiças. Mas isso é porque nasci com uma série de ligações mal feitas que provocam curto-circuitos intermitentes e me impedem de aprender. As dificuldades de aprendizagem têm um sentido mais lato do que se pensa. Enfim, quem se guarda e resguarda tem todo o meu respeito, mas mesmo assim a paciência tem limites. Se não há nada para dizer é mau sinal e ninguém me convence do contrário. Acredito que é necessário dosear, saber escolher e tornar importantes os momentos de partilha (não necessariamente interessantes). Saber calar-se é tão ou mais fundamental do que saber falar. Eu que o diga, do alto dos meus muitos anos de bipolaridade retórica. Mas falar, em particular, e não me refiro a comunicar de uma forma vaga e errática, não sistematizada, tem uma função desintoxicante e apaziguadora. É necessário, é fisiológico, é inevitável... Quem nunca ou faz ou muito raramente é certo que sofre com isso. Vejamos, desde que vivo e trabalho em Lisboa poucas têm sido as vezes em que me deparo com partilhas autênticas. É difícil as pessoas terem interesse umas pelas outras, é ainda mais difícil acreditarem no que dizem e é quase impossível disfarçarem a artificilidade nos seus gestos (que valem mil palavras, como as imagens) e no seu discurso. As identidades estão desintegradas e as intenções deslocadas. Permitam-me recorrer ao vernáculo para sintetizar estas impressões: estamos todos a cagar-nos uns para os outros porque as cabeças e as vidas estão todas fodidas e, mesmo que não estejam, algo ou alguém acaba por fodê-las. É esse o espírito de integração nas cidades, creio eu. Mas tudo isto para chegar à conclusão de que o silêncio já não é tão arbitrário nem, forçosamente, produto de consciências titubiantes. No ambiente profissional, por exemplo, se se revela insistente... é estratégico, pleno de significados, repositório de experimentação e saberes. É um silêncio ao qual aspiro e, que, finalmente, se começa a instalar sem pedir licença. A percepção de que aquilo que temos para dizer não tem ponta de interesse para a maioria das pessoas é até muito libertadora. Liberta-nos de sentir qualquer tipo de responsabilidade pelo próximo, impede-nos de nos distanciar da nossa missão na terra, legitima a nossa indiferença e silencia um eventual desprezo. Ah, e dá outro peso àquilo que decidimos dizer, pelo que convém pensar bem. No meu trabalho temos A., que é do tipo caladinha incendiária: quando fala é quase sempre demais e evoca chapadonas silenciadoras; e temos J., que é do tipo hás-de-desistir-que-eu-não-me-chateio. Por sinal, não se chateia mesmo, até porque é um gajo porreiro. Para alguns é suficiente, para outros é pouca fruta. Já percebi muita coisa, resta-me povoar o pomar de árvores altas e frondosas.
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5 comentários:
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Ridwan, Ridwan, essa foi de silencioso incendiário ou isto é porque a personagem, um psicólogo, procura ajuda? (Dois dos mais subaproveitados actores de cinema na mesma série: Gabriel Byrne e a grande Dianne Wiest. Uma boa escolha).
Porque "é giro"
:)
Ao ler-te imaginei-me na cadeira do psicoterapeuta a replicar com os habituais "Hmmm",é o que dá ver 21 episódios de in Treatment.
http://os7salmonetes.blogspot.com/2005/12/ser-lisboa.html
É por essas e por outras que não saio do "antro de criminalidade".
Obrigado por relembrares esse texto. Se tivesse de guardar uma só coisa deste blog bafiento seria esse. E o curioso é que foi muito visceral, pouco reflectido, e ainda hoje sinto o mesmo. Mas mesmo assim, o caos ainda oferece algum abrigo, só que é preciso lutar por ele. Essa do antro de criminalidade era a gozar, mas o centro ainda tem muitos motivos de interesse...
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