18.9.06

Miguel Carvalho vive tempos difíceis

Socorro!
Vivo tempos difíceis...

Não tenho carta, não conduzo e não sei distinguir um Fiat de um Volvo. Sou a piadinha favorita dos amigos e dos familiares: olham-me como algo de verdadeiramente jurássico e, às vezes por caridade, lá me dão boleia.

Demorei a comprar um telemóvel. Há uns anos acabei por ceder porque, qual patinho feio, já poucos me ligavam. Entre aparelhos perdidos e estragados, já lá vão uns três. A tecnologia vinga-se de tanto desamor e desapego, deve ser isso.

Num tempo de culto do corpo, da natureza, da praia, do mar, do surf e das boas ondas, não sei nadar. Qualquer fim-de-semana numa quinta com piscina é risota geral porque procuro sempre a parte reservada às crianças. «Olha para aquele matulão...»

Já dei comigo cheio de problemas de consciência por me atirar com parcimónia e beiços besuntados a um cabritinho de leite com batatinha alourada e arroz de forno. Os olhares em volta, das crianças e dos papás, foi de tal modo censório que encostei os talheres, pedi a conta e saí de fininho disposto a contribuir com 25 por cento do meu ordenado para a Sociedade Protectora dos Mémés de Forno.

Já comi duas ou três vezes em restaurantes macrobióticos e aí, sinceramente, descobri que o meu amor pelos outros era verdadeiramente digno de registo, tendo em conta o esforço que fiz para não perguntar onde é que, afinal, íamos jantar.

Durante semanas um simpático senhor de um ginásio da moda telefonou-me a perguntar pelo meu joelho direito só porque eu disse que, enquanto estivesse a fazer fisioterapia, não me apetecia decidir se queria ou não aceitar as fantásticas promoções que eles tinham para mim: um mês grátis para me amaciarem o lombo e prestações mensais bem em conta para me darem o corpinho com o qual, de resto, eu nunca sonhei.

Não vou de férias para Cancun, Coraçao, Fortaleza, Varadero ou Vilamoura e fico sem conversa numa roda de amigos.

Um funcionário da FNAC convidou há dias, de forma algo seca, um amigo a abandonar o balcão da cafetaria e a sentar-se numa mesa próxima porque não se pode fumar ao balcão. Para mim, foi novidade saber que, na FNAC, o fumo não circula e, até por isso, apeteceu-me fumar com ele.

Li na revista Pública que o facto dos homossexuais estarem progressivamente a sair dos armários – e ainda bem - está a ser aproveitado em termos comerciais para, perversa e sub-repticiamente, impor um estilo, um modo de vida, uma maneira de ser e estar, com linha de cosmética e histórias da carochinha à medida. Um dia destes dizem-me que não posso gostar de mulheres porque... não vende ou não é politicamente correcto.

Já deixei de ler Lucky Luke há uns anos pelo facto de ele ter trocado o tabaco de enrolar por uma palhinha. E daqui a uns tempos até Tom e Jerry vão deixar de fumar. Pior: vão aparecer aos nossos olhos como se nunca tivessem fumado.

Chega. Está decidido: vou fechar-me em casa e encher a despensa até abarrotar. Só entra quem disser a frase passe - «boa vida, vida da boa» - levar uma garrafa de vinho, uma caixa de charutos e souber cozinhar, pelo menos, uns rojões à minhota. A intolerância combate-se com a intolerância. Assim querem, assim têm. Se é preciso organizar a resistência, que se comece por algum lado.


Miguel Carvalho, VISÃO ONLINE, 24 de Agosto de 2006

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