5.8.06

Miguel Carvalho dixit

A marmita

Durante 43 anos, Bernardo Provenzano viveu quase no mais completo silêncio. Não usava telefone, não tinha telemóvel. Modernices como computador e internet não faziam parte do seu catálogo de sobrevivência num mundo de sombras. As ordens do mais procurado chefe da mafia siciliana eram rabiscadas em pequenos papéis que nunca se perdiam no caminho até ao destinatário. Assim foi durante décadas, sem que Bernardo deixasse de ser o que se sabe dos mafiosos de alto calibre: implacável.

Em tempos, havia mesmo sido conhecido como «O Tractor», devido à forma como disparava, matava «e fazia o que tinha de ser feito», segundo os jornais. E isto era o que de mais parecido tinha Bernardo com o nosso imaginário cinematográfico da Mafia. No resto, nem alarvidades, nem reuniões familiares, nem exibicionismo de puros e fumaradas.

Foi vivendo quase como um eremita que ele escapou à polícia. Habitava uma casa perto de Corleone – só podia ser um nome assim - na Sicília, na qual praticamente passava o dia. Dormia num saco-cama e as janelas estavam fechadas para que de noite nem uma luz se visse. A família, uma mulher e dois filhos, cumpriam o código de silêncio. E não se davam a outros ares, pelo menos à vista desarmada.

Bernardo era um mafioso monástico, entregue a si próprio e aos seus pensamentos. Não se sabe o que lia. Ou se escrevia algo mais do que os papelitos que marcavam os alvos da Cosa Nostra. Através dos seus manuscritos, ameaçou-se e matou-se. Das mãos de Bernardo saíram, durante anos, as mais epistolares e crueis sentenças de morte. E, talvez, a mais rasurada gestão e lavagem dos proveitos.

Bernardo Provenzano foi detido há dias em casa, depois de décadas de buscas incessantes.

Ainda tentou manter a porta fechada, mas a resistência durou pouco, um quase nada que o colocou entre a resignação e evocações a Deus e à Virgem. O responsável pelo comando operativo da polícia considera que, pela vida que levou, Bernardo está mais livre agora do que nos últimos 43 anos que andou à solta. Suprema ironia, cheia de razão. Na prisão, Bernardo poderá finalmente receber visitas da família. E dormir tranquilo.

Especialista em serpentear por entre as armadilhas montadas ao longo de anos, Bernardo foi denunciado por um saco de compras de um supermercado. Nele, um dos seus filhos levava-lhe a comida feita em casa. O vai-vem do saco traiu Bernardo.

Para mim, Bernardo já era uma figura simpática. Mas mesmo o mais simpático, carismático, honrado e discreto dos mafiosos não deve escapar à condenação pelos seus crimes. Rendo-me, porém: para quem passou tanto tempo preso à sua condição sanguinária, a comida caseirinha devia ser atenuante. Não falo em absolvição. Essa, concordo, só em casos extremos. Ficamos assim: não tomo posição antes de saber o conteúdo da marmita.

Miguel Carvalho, VISÃO ONLINE, 2 de Agosto de 2006

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