4.7.08
Um homem e um bolo
Quando era puto e vivia em Abrantes, a minha avó Alcina levava-me uma vez por semana à pastelaria e deixava-me escolher um bolo. Hábito que ainda se estendeu brevemente a Coimbra, onde, durante muito tempo, poucas consolações havia. Tinha a minha avó para me fazer sentir especial (às vezes demasiado) e para me azucrinar o juízo. Quando ela achava que eu ensimesmava, pegava em mim e íamos passear, com trajecto obrigatório pela Rua da Sofia. Ela dava-me o que podia dar, e eu escolhia, invariavelmente, um guardanapo. Na altura não me importava de trincar o açúcar branco e não queria saber se o creme era feito com ovos em pó. Se calhar eram ovos a sério, porque sabia mesmo bem e era um tempo em que as coisas eram honestas. Fidelizei-me ao guardanapo, nesse ritual com a minha avó. A minha avó, que me mimou até estragar, que gostou de mim mais do que uma mãe e que eu não soube acarinhar como merecia, porque partiu demasiado cedo. Talvez tenha perdido a oportunidade de me reconciliar com o mundo. Talvez tenha ficado com ela um código de pertença. Há muitos anos que deixei de comer guardanapos ou sequer de reparar neles. Este, como tantos outros rituais que associamos às pessoas que amamos, deixou de ter sentido e acabou memória perdida. No meu caso, não tanto porque doa, mas porque o rejeitei. Recusei ficar sozinho, quando a minha avó partiu. Eu e o guardanapo não nos reencontrámos, somos velhos amigos desavindos, estamos mudados e fora de moda. Mas fico contente por saber que a oferta não desapareceu.
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